domingo, 13 de agosto de 2017

Ferro Velho


Meu avô tentou muitas coisas para sustentar a família -  armazém, loja de calçados e tecidos, sacaria, linguiças caseiras e por fim o ferro velho, que era o que minha avó menos gostava.

O avô Agostinho era um bom homem, talvez fosse isso o que atrapalhava, vendia fiado e esquecia de cobrar, acreditava na palavra dada, era tranquilo, de poucas falas, sorridente e pacato.

Minha avó Mariquinha era exatamente o contrário, inquieta, falante, brava, exigente, desconfiada, sempre pronta a dar um pito, mandava na casa, mandava no marido mas não tinha como mandar no destino, esse era seu maior problema.

Por fim veio a velhice, os filhos já criados e casados não precisavam de apoio financeiro, meu avô largou mão de tudo que tomava seu tempo e exigia aquilo que ele não queria mesmo fazer e só ficou com o ferro velho.

O ferro velho aconteceu, não foi um plano elaborado ou análise de mercado, foi das artes e artimanhas de um tio que começou a trazer peças de carros, carcaças e pneus para guardar no quintal, que era até aquele momento, de bom tamanho.

O quintal era dividido em dois, uma parte aberta e grande, na frente da casa, e um quintalzinho pequeno, com algumas frutas e verduras, balanço para os netos e uma mesa grande no fundo da casa.

O quintal da frente da casa era onde minha avó reinava com seu primor por cultivar flores, principalmente Hortênsias, sua preferida, foi por algum tempo o único lugar somente seu, onde podia exercer seu domínio sem interferências.

E então começaram a vir as peças de carro, que era deixadas rente ao muro não caiado do vizinho, com a promessa de serem levadas logo, muito rápido, no máximo duas semanas e foram se acumulando, como essas coisas sempre acontecem.

De repente meu avô era dono de um ferro velho, que tomava toda a frente da casa, com carros aos pedaços, geladeiras, pneus, portas, coisas estranhas que nunca descobri o que era e desconfio que nem eles mesmos sabiam.

Sobrou é claro uma passagem livre, uma entrada ainda acessível a casa, com sua fileira unica de Hortênsias, e todo o resto um amontoado de tralhas que um dia foram bonitas e usáveis, mas agora eram o pesadelo da minha avó.

No entanto para nós crianças era um farto campo de brincadeiras, pique-esconde perfeito, labirinto, castelo, zoológico de aranhas, joaninhas, criadouro de borboletas e as vezes uma ratazana destemida.

De tarde, após o almoço de domingo, depois do café e durante a soneca dos adultos nos metíamos no ferro velho, lutando em cima dos montes de entulho, correndo entre as valas de pneus ou brincando dentro dos carros.

E o que mais gostava, e ansiava por toda semana, era ficar sozinha, num velho Gordini azul pálido, arreado no chão sem os 4 pneus, mas ainda com portas que abriam e fechavam.

Levava um papel todo rabiscado que fingia ser um mapa, um pedaço de torta ou bolo, um copo de suco, e ia para minha viagem ESPACIAL.

Sim, ESPACIAL, enquanto outros fingiam estar dirigindo por estradas, indo a algum lugar nesse mundo eu sempre estava de saída do planeta, em direção a alguma galáxia, tinha até o mapa com as coordenadas.

Não sei exatamente e porque isso surgiu, no entanto era natural na minha imaginação viajar a outro planeta com a missão de encontrar um ambiente adequado a vida humana ou novas formas de vidas, de todas as espécies.

O Gordini se transformava na minha nave espacial, o papel de pão e o cotoco de lápis no meu diário de bordo, um guarda chuva rasgado na minha antena de comunicação, a capa de chuva virava meu traje espacial.

E eu sonhava muito, longe, saia da atmosfera do planeta e ia deixando todas as confusões humanas para trás, entrava no espaço, silencioso e imenso, num longo percurso até encontrar o que passaria a chamar "minha casa".

Não cheguei a encontrar a "minha casa", mas procurei bastante, me perdi idem, voltava quando acabava o combustível da capitã, quando apertava a vontade de ir ao banheiro ou quando começava a escurecer.

As vezes alguém esquecia de me chamar e nesse momento eu sentia que realmente era de outro lugar e que um dia seria resgatada pelos meus parceiros iguais, era só uma questão de meses ou alguns poucos anos.

Um dia o Ferro Velho desapareceu, de repente, não foi saindo aos poucos, foi tudo de uma vez, foi um domingo triste para nós crianças e muito feliz para todas as donas de casa e mulheres adultas da família.

No lugar em que ficava o velho Gordini encontrei um dos meus lápis, minha nave espacial tinha partido sem mim, foi o que senti no momento, finalmente teria que me acostumar a esse planeta e todas as estranhezas das gentes grandes.

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