quarta-feira, 2 de julho de 2014

Um olhar sobre a vida


Hoje eu conheci Pedro, na verdade eu conheci primeiro o Juca, ele estava andando bem devagar, com a coleira pendurada, naquele passo de cachorro cansado ou velho.

Primeiro pensei que tinha se perdido do seu dono ou tinha sido abandonado, mas observei que de vez em quando ele olhava para trás e acompanhando essas olhadelas eu vi o Pedro, que eu ainda não sabia se chamar Pedro, parecia apenas uma pessoa de rua, um mendigo.

Preocupada com o cachorro perguntei ao homem se ele era o dono, a resposta foi um sorriso imenso com um sonoro sim, esse era seu Juca e paramos para conversar.

Pedro o encontrou num posto de gasolina, ainda era uma criança, bem pequeno, ele me disse.

Às vezes ele costumava dormir no posto depois que fechava, e ai naquela noite encontrou o filhote, abandonado, gania e parecia ter fome, por sorte tinha conseguido um dinheiro e comprado um pacote de salsicha, ele foi cortando em pedacinhos e dando para o cachorrinho.

Estão juntos a três anos, o Pedro cuida do Juca (dá vermífugo, coloca anti pulga, dá banho, escova, castrou) e o Juca cuida do Pedro, os dois vivem na rua, e até hoje o Juca adora salsicha, ainda mais da mão do dono, partido em pequenos pedaços.

O Pedro contou que ele é seu único amigo verdadeiro, o único também que pode confiar no amor, e que o Juca o ajuda muito pois as pessoas gostam de animais, tentam ajudar, muito mais do que aos seres humanos - Na rua tem muitas pessoas más, mas o Juca as afasta!

O Juca não se importa se as roupas do amigo estão velhas, puídas, a barba grande, o cabelo longo e despenteado (mas muito limpo, devo dizer, muito asseado no seu abandono), se ele carrega apenas uma maleta pequena com tudo que possui no mundo (a escova para pentear o Juca está lá dentro também, ao lado do radinho de pilha).

E ficamos horas conversando ali numa esquina, perto da praça do centro, o Pedro falando, falando muito sobre sua vida, de forma ordenada, tentando me mostrar o ser humano que ali estava, enquanto isso o Juca permanecia deitado ao lado da maleta, cabeça nela, descansando um pouco e deixando seu dono desabafar.

Perguntei onde dormiam - Em qualquer lugar que não fosse enxotados!

Perguntei se tinham comido - Sim, hoje eles tinham dividido uma marmita grande, presente de uma mulher com pena do Juca.

Perguntei se estava conseguindo fazer algo para ganhar dinheiro - Antes sim, lavava carros, ficava nas esquinas guardando vagas para estacionar, catava latas, mas envelheceu, adoeceu, aconteceram muitas coisas e agora tudo estava mais difícil, mas o Juca não se afastava, mesmo nos dias em que comiam apenas meio pão.

Tinha vezes, ele me contou, que outro cachorro os seguia, perto da praça do canhão, uma cachorrinha que dormia num restaurante e estava sempre com fome pois o restaurante joga a comida fora mas não dá nem para os cachorros e nem para os mendigos.

Conversamos sobre tudo, sobre a vida, as perdas, os ganhos, os sonhos, gente louca, gente boa, a queda e a esperança. 

No final, eu, que também estou passando um grande apuro financeiro, tirei meu ultimo R$ 20,00 da bolsa e dei para o Pedro, apesar dele dizer que não pede esmola, pede apenas comida para ele e o amigo.

Meus últimos vinte até o dia vinte, meio rimado né, faltam 15 dias exatamente, mas eu tenho uma casa (o aluguel deste mês esta pago), um quarto quente e seguro para mim e para minhas meninas, tenho água, luz, tenho até um notebook e por enquanto internet.

Eu também adoeci, envelheci, fiquei sozinha, fiz muitas burradas (recentemente inclusive), poucas coisas nos separam, muitas coisas nos unem, principalmente o amor aos animais.

Na nossa despedida dei o endereço de casa, se ele quiser conversar novamente um dia, percebi pela sua clareza que ele não era pessoa de abusar, mas que, o que mais precisava, era conversar, se sentir humano, interessante e interessado, valorizado.

Teve uma época, em SP, que eu conversava com todos os mendigos que encontrava na Av. Paulista, geralmente passeava muito por lá, sempre sozinha, sempre melancólica, era muito bom conversar com eles, ouvir suas histórias, aprendi muito sobre se abandonar, que é algo que acontece antes da rua, quando já estamos sem nada, por fora e por dentro.

A algum tempo eu me sinto sem nada, por dentro e por fora, a única coisa que ainda me mantem numa casa, numa rotina, são minhas meninas, quando elas se forem eu também irei, fisicamente no caso delas, metaforicamente no meu caso.

Eu sei que posso fazer muitas coisas, assim como o Pedro também sente sobre si mesmo, só que não temos mais tempo, não temos mais espaço, não tem mais serventia humana, propriamente dita.

Voltando me senti muito bem porque a coisa que mais quero é ajudar/facilitar o processo de cura das outras pessoas, de quem realmente quer e dá valor, e geralmente essas pessoas não podem pagar, são pessoas como o Pedro, a Marta, a Isabel, a Tinha, o Francisco, a Bernadete, o Carlos, o Vicente....a lista é grande, todas pessoas pobres e carentes que eu encontrei.

É claro que existem pessoas, pagantes, que gostariam de ser ajudadas, que procuram sua cura, mas para essas tem muitos terapeutas disponíveis, já para os Pedros da vida são bem poucos.

Em casa me lembrei das palavras de Madre Teresa, veja bem não sou católica e nem religiosa, mas é preciso admirar uma mulher corajosa e realmente bondosa - Qualquer um deles pode ser Jesus!

No meu caso - Qualquer um deles pode ser a Sandra!

E antes que alguém rapidamente me acuse de pensar com o espírito de miséria, eu quero dizer que estou pensando na verdade com o espirito da realidade, a realidade que está nas ruas, mas que geralmente não prestamos atenção, na nossa corrida por sucesso, porque simplesmente estamos cegos para o outro.

Estou relatando isso para que todos reflitam sobre a vida que estão tendo, pensem principalmente como torna-la mais descomplicada, menos neurótica, mais gratos, menos negativa, mais satisfeitos com as coisas básicas que são importantes e nem percebemos.

Então tome seu banho quente com prazer, coma sua comida sem reclamações sobre o tempero a mais, assista sua tv para se divertir, abrace e beije sua família, não use seu tempo com eles para cobrar, agredir, criar magoas, não reclame se seu cachorro pede atenção e carinho ou se tem que leva-lo para passear, e outras tantas coisas que lhe sobram e para tantas, tantas e tantas pessoas faltam.


Abre o olho. Todos nós vamos envelhecer, adoecer e um dia morrer. Só o amor praticado irá ficar. Só o amor é real.