Nos domingos de almoços simples os homens eram "convidados" a ficar longe da cozinha, e junto com eles, nós crianças, debandávamos para a rua.
Os homens adultos faziam uma roda para conversar ou jogar truco, com aquele alegre e rude jeito italiano, e as crianças aproveitavam o tempo livre para empinar pipa, jogar queimada, pião ou bater figurinha.
Eu no entanto tinha uma destinação diferente, seguia meu avô até o jogo de BOCHA numa quadra quase vizinha, muito perto, onde os amigos mais velhos se reuniam.
A BOCHA é um jogo tipicamente Italiano, surgiu na roma antiga, lá pelo ano 500 e já foi tão popular que causava algazarra e depredação, chegando a ser proibida duas vezes, em 1560 e 1.600.
Nesse jogo, feito em quadras de areia, compridas e com pouca largura, os times, de 4 a 6 pessoas, as vezes mano a mano, devem arremessar uma bola, a dita bocha, o mais próximo possível de um bolim, um pino de indicação.
Aquele que chegar mais perto do bolim pontua, e vale bater com a sua bola na bola do adversário que está quase grudado no bolim e tira-lo da jogada.
O jogo é barulhento, tanto pela bolas que quicam quando são arremessadas ou batem uma nas outras, quanto pelas expressões impagáveis dos jogadores nos seus momentos de sorte ou azar.
Mas o que mais gostava era chegar na quadra e ser recebida calorosamente por aqueles homens idosos, todos avôs italianos, de uma forma tão amorosa que mesmo com a diferença do idioma eu podia entender.
SEI MOLTO BELLA (você é muito bela), BELLISSIMA (belissima), LA SUA FAMIGLIA È BENEDETTA (sua família é abençoada), CHE FELICITÀ (que felicidade).
Porque uma criança gordinha era a personificação da beleza para aqueles homens que sofreram fome e perdas imensas nas guerras, no desterro, que vieram ao Brasil carregando a esperança de criar sua família num lar FELIZ PER ABBONDANZA.
Verdade seja dita eu era uma das poucas crianças gordinha, alias a unica na minha família, e isso desagradava muito minha mãe, que considerava a gordura um defeito de caráter e uma deformidade física.
Meus irmãos eram magros, meu pai, minha mãe muito magra, e de repente eu, uma bolinha, de bochechas vermelhas e rechonchudas, pernas e braços grossos, cabelos encaracolados, a perfeita personificação do bebe johnson, mas com 6 anos.
Dos meus pais ouvia para parar de comer pois estava ficando cada dia mais gorda e feia, e de repente aqueles bons homens falavam em alto e bom som que eu era uma benção, bela e certa.
Alias meu avô ia na BOCHA mas não jogava, era só para colocar a conversa em dia com os amigos da mesma idade, e eu igualmente nunca joguei, mesmo com outras crianças, ia para me sentir bonita, sem defeitos, UNA RAGAZZA SPECIALE.
Meu avô tentou muitas coisas para sustentar a família - armazém, loja de calçados e tecidos, sacaria, linguiças caseiras e por fim o ferro velho, que era o que minha avó menos gostava.
O avô Agostinho era um bom homem, talvez fosse isso o que atrapalhava, vendia fiado e esquecia de cobrar, acreditava na palavra dada, era tranquilo, de poucas falas, sorridente e pacato.
Minha avó Mariquinha era exatamente o contrário, inquieta, falante, brava, exigente, desconfiada, sempre pronta a dar um pito, mandava na casa, mandava no marido mas não tinha como mandar no destino, esse era seu maior problema.
Por fim veio a velhice, os filhos já criados e casados não precisavam de apoio financeiro, meu avô largou mão de tudo que tomava seu tempo e exigia aquilo que ele não queria mesmo fazer e só ficou com o ferro velho.
O ferro velho aconteceu, não foi um plano elaborado ou análise de mercado, foi das artes e artimanhas de um tio que começou a trazer peças de carros, carcaças e pneus para guardar no quintal, que era até aquele momento, de bom tamanho.
O quintal era dividido em dois, uma parte aberta e grande, na frente da casa, e um quintalzinho pequeno, com algumas frutas e verduras, balanço para os netos e uma mesa grande no fundo da casa.
O quintal da frente da casa era onde minha avó reinava com seu primor por cultivar flores, principalmente Hortênsias, sua preferida, foi por algum tempo o único lugar somente seu, onde podia exercer seu domínio sem interferências.
E então começaram a vir as peças de carro, que era deixadas rente ao muro não caiado do vizinho, com a promessa de serem levadas logo, muito rápido, no máximo duas semanas e foram se acumulando, como essas coisas sempre acontecem.
De repente meu avô era dono de um ferro velho, que tomava toda a frente da casa, com carros aos pedaços, geladeiras, pneus, portas, coisas estranhas que nunca descobri o que era e desconfio que nem eles mesmos sabiam.
Sobrou é claro uma passagem livre, uma entrada ainda acessível a casa, com sua fileira unica de Hortênsias, e todo o resto um amontoado de tralhas que um dia foram bonitas e usáveis, mas agora eram o pesadelo da minha avó.
No entanto para nós crianças era um farto campo de brincadeiras, pique-esconde perfeito, labirinto, castelo, zoológico de aranhas, joaninhas, criadouro de borboletas e as vezes uma ratazana destemida.
De tarde, após o almoço de domingo, depois do café e durante a soneca dos adultos nos metíamos no ferro velho, lutando em cima dos montes de entulho, correndo entre as valas de pneus ou brincando dentro dos carros.
E o que mais gostava, e ansiava por toda semana, era ficar sozinha, num velho Gordini azul pálido, arreado no chão sem os 4 pneus, mas ainda com portas que abriam e fechavam.
Levava um papel todo rabiscado que fingia ser um mapa, um pedaço de torta ou bolo, um copo de suco, e ia para minha viagem ESPACIAL.
Sim, ESPACIAL, enquanto outros fingiam estar dirigindo por estradas, indo a algum lugar nesse mundo eu sempre estava de saída do planeta, em direção a alguma galáxia, tinha até o mapa com as coordenadas.
Não sei exatamente e porque isso surgiu, no entanto era natural na minha imaginação viajar a outro planeta com a missão de encontrar um ambiente adequado a vida humana ou novas formas de vidas, de todas as espécies.
O Gordini se transformava na minha nave espacial, o papel de pão e o cotoco de lápis no meu diário de bordo, um guarda chuva rasgado na minha antena de comunicação, a capa de chuva virava meu traje espacial.
E eu sonhava muito, longe, saia da atmosfera do planeta e ia deixando todas as confusões humanas para trás, entrava no espaço, silencioso e imenso, num longo percurso até encontrar o que passaria a chamar "minha casa".
Não cheguei a encontrar a "minha casa", mas procurei bastante, me perdi idem, voltava quando acabava o combustível da capitã, quando apertava a vontade de ir ao banheiro ou quando começava a escurecer.
As vezes alguém esquecia de me chamar e nesse momento eu sentia que realmente era de outro lugar e que um dia seria resgatada pelos meus parceiros iguais, era só uma questão de meses ou alguns poucos anos.
Um dia o Ferro Velho desapareceu, de repente, não foi saindo aos poucos, foi tudo de uma vez, foi um domingo triste para nós crianças e muito feliz para todas as donas de casa e mulheres adultas da família.
No lugar em que ficava o velho Gordini encontrei um dos meus lápis, minha nave espacial tinha partido sem mim, foi o que senti no momento, finalmente teria que me acostumar a esse planeta e todas as estranhezas das gentes grandes.
Na minha infância a coisa mais fantástica que poderiam fazer nos almoços de domingo era PIZZA, todas as crianças ficavam alvoroçadas, era como o prenúncio de uma cerimônia muito desejada.
PIZZA era geralmente o cardápio para uma reunião maior da família, agradava a todos, era mais fácil de fazer e consumir, nem era preciso se sentar a mesa e isso também fazia parte do que nós crianças mais gostávamos, a informalidade.
Um domingo de PIZZA era um domingo mágico, em todos os sentidos, e enquanto meus irmãos ficavam lá fora brincando com os primos eu preferia acompanhar passo a passo dessa maravilhosa aventura gustativa.
Começava numa grande mesa, larga e comprida o bastante para misturar, sovar, abrir, colocar todos os ingredientes, do recheio a própria massa, era belo ver as linguiças, queijos, presunto, ovos, pimentões, a água num grande jarro, a farinha grossa num saco de papel pardo.
Não era uma mesa do dia a dia, ela ficava nos fundos do quintal debaixo de um plástico, era uma mesa de reunião de família e isso já era parte da diferença, a mesa do encontro, a mesa de todos os Olivieris.
Trés tios e meu pai a traziam para a frente, para perto da cozinha, a limpavam e as mulheres começavam a sua dança milenar de encantar e eventualmente cantar enquanto preparavam tudo.
Pouco a pouco tudo que seria preciso vinha a mesa, em latas ou em copos, em pratos e travessas, de todas as formas e tamanhos, cada convidado trazia sua parte como uma orquestra bem preparada.
E por fim meu avô trazia o garrafão de azeite do antigo empório e aquele verde-vivo lindo era a lembrança da nossa essência além mar.
Uma das coisas que eu mais gostava era quando minha avó pegava um copo simples, de vidro, enchia com água e colocava uma pequena bolinha de massa nele, que afundava e parecia grudar no fundo, mas que, no tempo certo de descanso, subiria indicando que já poderia ser aberta.
Ela colocava o copo na janela e eu ficava atenta as pequenas bolhas que se formavam no fundo e subiam, até que num momento toda a bolinha era suspensa, como se a força do meu desejo a tivesse trazido a tona, nesse momento batia palmas.
Ver diversas mulheres, de gerações diferentes, com pequenos rolos, debruçadas vigorosamente sobre as bolas de massa, esticando, puxando, abrindo, dando a forma centenária ou milenar, conhecida, era meu balé italiano.
E minha tia sempre cantava, musicas antigas e novas, todas misturadas, com aquele brilho de satisfação de quem já havia passado muita privação, de todos os tipos, e que sabia valorizar a abundância de uma boa mesa.
Enquanto isso os homens cortavam e fritavam diversos ingredientes, geralmente na própria banha do acondicionamento, e vegetais, como abobrinha e pimentão que minha avó tirava da própria horta e tinha um odor tão pronunciado que eu já pressentia como seria o gosto.
Muitas das minhas boas memórias estão ligadas ao alimento, o fazer a comida em família ou entre amigos, naquela época comemorava-se por comer, era o reconhecimento da oportunidade de permanência, pessoal e familiar.
Comprar uma pizza pronta, congelada e embalada num plástico, nem passava pela cabeça de alguém que isso algum dia seria possível, e se passasse talvez fosse algo repulsivo, cozinhar era um encontro, a comida era uma mágica, comer era uma festa.
Às vezes você tem que se perguntar - Que tipo de pessoa eu sou?
Olhar para sua diversidade, nuances que são perdidas quando tentamos nos encaixar na sociedade, grupo, ideia, religião, conceito ou tendência.
Que tipo de pessoa eu sou?
Esse questionamento deveria vir muito antes dos planos de nos tornamos aquele "alguém" almejado, antes da escolha da profissão, de estabelecer um lar ou um relacionamento a longo prazo.
Pois geralmente queremos ser o profissional, ter a casa ou o amor a partir da pessoa imaginária, aquela que não somos e, se tivermos sorte, nunca conseguiremos ser.
São nossas diferenças que nos fazem interessantes, ruidosos, apavorantes, amigáveis, artísticos, espetaculares, supreendentes animais que se colocaram numa condição grandiosa e perigosa.
Toda a natureza se permite infindáveis formas, cores, aromas, sabores, funções, ações, caminhos, expressões, no entanto fugindo a nossa essência, queremos tonalizar e modular a todos numa única forma e chamamos a isso "perfeição".
O que será perfeição para um carvalho? Uma doninha? Uma cachoeira? Um molusco? Um vulcão? Um dente de leão? Uma estrela? Um gato? Um tornado? O mar? Uma pulga?
Perfeição, o mais alto nível de valores, coisa sem defeito, que se completou.
Será possível existir e para que?
Por que buscamos o mais alto nível de valores de coisas que estão em movimento, são impermanentes, como toda vida, se iniciam e se destróem?
Será que para não ouvir a voz da grande sabedoria precisaremos continuar nos conflitando, em embates tolos sem sentido?
Sim, somos perecíveis, diversos, nunca iguais, como impressões digitais, iris, até mesmo corações que se negam a reconhecer outro corpo quando transplantado.
Deveríamos considerar isso como magnífica oportunidade, uma paleta de cores infinitas, texturas ainda não aproveitadas, sem julgar, sem temer, sem fechar os olhos para não reconhecer, não somos aquilo que imaginamos.
Que tipo de pessoa eu sou? Quieta ou estridente? Ponderada ou Irreverente? Sensível ou Concreta? Direta ou Acrobata? Amorosa ou Distante? Física ou Inefável? Encantadora ou Assustadora? Determinada ou Mutável?
Deixar que sua particularidade não seja mais em função e determinada pela pluralidade, uma diversidade diversa do que tendemos a considerar perversa.
Não ter medo de olhar para dentro, pois o destemor a si mesmo traz o amor que tanto propalamos como o remédio necessário da cura da nossa desumanidade.
A aceitação da própria e bela aspereza, outras formas que ainda não entendemos como funcionam e onde se encaixam, essa deveria continuar a ser a primeva ciência para nosso próprio crescimento.
Não - Quem eu sou? Mas - Quem sempre fui assim desapercebida?