quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O prazer das "cousas"



Ontem tive uma daquelas oportunidades especiais que o acaso nos traz.

Enquanto esperava o atendimento moroso no hospital pude receber instruções de uma sabia, essas que ainda estão no planeta, envelhecidas e por vezes estarrecidas com o teor das mudanças.

Sentei ao seu lado, um tanto preocupada por alguém tão idosa parecer estar sozinha.

Pessoas iam e voltavam e ela tão calma, segurando seu copinho de água, então ao me olhar viu que eu tentava escrever algo num papel mas a caneta falhava e calmamente puxou uma bic da sua pequena bolsa de fuxico.

"É uma caneta, comum, mas executa muito bem a tarefa para a qual foi criada!", me disse, e eu me surpreendi com seu tom de voz, a escolha das palavras, a forma como se expressava e por alguns minutos fiquei quieta segurando a caneta.

Ela pareceu compreender meu aparente espanto e continuou "Eu tenho 87 anos, nasci antes da caneta, mesmo lápis era um luxo".

"No entanto agora uma caneta precisa fazer muito mais do que escrever, essa caneta tão simples não serve para meus netos e bisnetos, porque ela apenas escreve"

"Assim eles me disseram : se tem caneta que acende e ilumina, diz as horas, apaga o que escreveu errado, tem calendário, cheiro de frutas e até escreve de cabeça para baixo, porque ter uma caneta que só escreve !"

"Minha filha, no meu tempo as cousas eram cousas, eramos nós que lhe dávamos significado, agora as cousas precisam dar prazer, nos fazer feliz, ser cada vez melhor, porque senão ninguém compra"

Seu nome é Maria Assumpção Cabral, tem 87 anos, foi professora de português, literatura, francês, leu os clássicos, filosofia, poesia, e agora esta aqui, ao meu lado, num mundo irreconhecível e empobrecido.

" A partir do momento que precisamos que tudo nos traga felicidade e prazer não conseguimos mais aceitar a dor, o esforço, o dever, a dificuldade, os obstáculos, a simplicidade, abrir mão de alguma coisa pelos outros"

"No meu tempo se estudava para acrescentar algo na vida, não porque ia ganhar dinheiro com isso, você lia porque isso ia burilar sua mente e seu espirito, como um diamante."

E segurando a caneta eu pensava que também era do tempo que as coisas eram simplesmente coisas e que o valor de cada um era dado por quem a pessoa era, como vivia, o que fazia, suas crenças.

"As cousas agora precisam dar prazer porque tudo é muito fácil, estudar, trabalhar, falar com os parentes, viajar e com tanta facilidade ninguém suporta nada difícil e que precise de paciência e tempo".

E ai logo surgiu um parente, falando que ela devia parar de chatear as outras pessoas, que estava demorando muito e iam embora, voltavam depois, etc e tal.

Ela me deixou a caneta com uma ultima recomendação "não fuja do esforço, não se intimide com as dificuldades, porque o prazer das cousas é pequeno, as cousas duram pouco, só o que lutamos para conseguir nos transforma".

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